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Publicado em: 12/12/2018

Carta Capital: Dívida impagável

ENTREVISTA Não há solução definitiva para os estados sem repactuar os débitos com a União, diz Juracy Soares, da Febrafite

Mesmo após renegociar os débitos com a União os estados fecharam o ano passado com déficit de 20,3 bilhões de reais, alta de 12,5 bilhões entre 2016 e 2017, segundo recente relatório do Tesouro. Na avaliação de Juracy Braga Soares Júnior, presidente da Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais (Febrafite), a responsabilidade não é só dos governadores. “Além de perder a mão com a política de desonerações, o governo federal praticou operações de crédito com taxas semelhantes àquelas praticadas pela iniciativa privada”, diz Soares Júnior, a defender, na entrevista a seguir, a repactuação dessas dívidas.

CartaCapital: O que explica esse descontrole das contas estaduais?
Juracy Braga Soares Júnior: Nos anos 1990, o Congresso aprovou a Lei Kandir, que desonera as exportações de produtos primários e semielaborados. Estados produtores, a exemplo de Minas Gerais, contavam com a cobrança de ICMS desses bens vendidos para o exterior. Da noite para o dia, essa receita desapareceu. De lá para cá, o Brasil manteve-se como um dos países que cobravam as mais altas taxas de juro do mundo. Quando os estados trocaram as suas dívidas por débitos com a União, o governo federal impôs uma forma draconiana de reajuste, baseada no IGP-DI, que calcula a inflação acima do índice oficial (IPCA), mais uma taxa porcentual em torno de 6% ou 7%. Isso fez com que os empréstimos contraídos pelos estados crescessem cerca de 1.400% em 18 anos, enquanto a inflação do período foi de pouco mais de 230%. Ou seja, a União não se limitou a fazer a recomposição do capital, cobrou pesadas taxas de juro dos estados.


“O governo federal concede empréstimos para empresas, pelo BNDES, com taxas bem menores que aquelas cobradas dos estados”


CC: As desonerações fiscais concedidas nos últimos anos contribuíram para esse cenário?
JBSJ: Sim, isso prejudicou ainda mais as receitas estaduais. Ao conceder anistia aos devedores de IPI, para citar um exemplo, o governo federal abriu mão de um grande volume de recursos, e isso se reflete nos repasses feitos pela União da parte que cabe aos estados nesse imposto. Houve abuso nos refinanciamentos concedidos aos devedores. Chegamos a ter Refis de Refis. Esse prazo prolongado contribuiu para deteriorar as finanças dos estados. O governo federal concedeu, ainda, numerosos subsídios a setores específicos da economia. Isentou o IPI de automóveis, da linha branca de eletrodomésticos… Para compensar a perda, aumentou o peso de contribuições, como a Cide, que incide sobre combustíveis. Só que a União não precisa repartir essas contribuições com os estados, como é obrigada a fazer no caso dos impostos. Ao contrário do que a Constituição previa, houve uma recentralização de recursos com a União, em detrimento dos demais entes federativos.

CC: Então o governo federal é um dos principais responsáveis pela crise vivenciada pelos estados?
JBSJ: No caso do elevado endividamento, a União tem, sim, grande parcela de culpa. Além de perder a mão com essa política de desonerações, o governo federal praticou operações de crédito com taxas semelhantes àquelas praticadas pela iniciativa privada. Por outro lado, concede empréstimos para empresas, através do BNDES, com taxas bem menores que aquelas cobradas dos estados.

CC: Recentemente, o Banco Central estimou que os estados terão de amortizar uma dívida líquida de 183 bilhões de reais nos próximos cinco anos.
JBSJ: Isso é impagável. São Paulo, por exemplo, recebeu de empréstimo pouco mais de 170 bilhões de reais, pagou mais de 240 bilhões e ainda deve 230 bilhões. Percebe o absurdo? Os novos governadores só conseguirão desativar essa bomba-relógio se a União aceitar repactuar esses contratos desde a sua origem. Se recalcular os saldos devedores com base no IPCA, a maior parte dos estados estaria próxima de quitar os seus débitos com a União. Ou seja, comprometeria muito menos receitas com o serviço da dívida, para investir na população.

CC:Para alongar o pagamento das dívidas, o governo de Michel Temer impôs aos estados rígidos programas de austeridade fiscal. Adianta cortar despesas a todo custo, se os contratos de empréstimo não forem revistos?
JBSJ: Não, de forma alguma. Os estados não têm como manejar um volume de dívida tão grande, inflado com os juros cobrados pela União. É uma situação semelhante à do pai de família que entrou no rotativo do cartão de crédito e não consegue mais pagar aquela montanha de juros. O que faz para se livrar dessa situação? Chama o banco para renegociar isso. A Febrafite cobra uma solução definitiva. Não adianta os estados contraírem dívidas para pagar outras dívidas. A União precisa conscientizar-se de que as operações de crédito feitas no fim da década de 1990 e início dos anos 2000 foram realizadas com taxas de juro exorbitantes, que tornaram essa dívida impagável. Que estado consegue fazer a sua arrecadação crescer sete vezes acima da inflação?

CC: E qual é o impacto dos regimes de Previdência dos servidores no desequilíbrio das contas estaduais?
JBSJ: Antes de falar em reforma da Previdência, uma coisa realmente necessária, precisamos rever a dívida com a União e fazer uma reforma tributária. Hoje, muitos estados estão atolados em uma guerra fiscal fratricida. Um governador chega para o dono de determinada indústria e diz: “Você paga 17% de imposto onde está, mas, se vier para cá, pagará 1%”. Dessa forma, um estado mata o outro. Por isso defendemos a migração para o modelo do Imposto sobre Valor Agregado (IVA), bem mais sustentável. Pouco importa se você produz um carro no Rio Grande do Sul ou no Ceará, a tributação será feita no estado onde ele for comprado, onde ocorre o consumo, e não na produção. Acaba a guerra fiscal.

CC: Como compensar os estados produtores, sobretudo aqueles que abrigam atividades econômicas com forte impacto ambiental, como é o caso da mineração?
JBSJ: É possível criar um fundo de equalização para compensar eventuais distorções. Defendemos, ainda, uma longa transição, de forma a respeitar os contratos firmados pelos estados. Muitas empresas fizeram pesados investimentos na expectativa de um determinado retorno, a incluir os incentivos fiscais. Com uma transição mais longa e suave, teríamos maior segurança jurídica. Não haveria nenhuma quebra contratual. •


Entrevista publicada na Carta Capital nº 1033, de 12 de dezembro de 2018. A revista está disponível nas bancas e no site www.cartacapital.com.br

Fonte: Febrafite