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Publicado em: 27/02/2019

Artigo | Novo modelo gerencial da Sefaz: precisamos mudar?

*Por Flávio Julião

O ano de 2019 começou com uma proposta de um novo modelo gerencial para a SEFAZ. Sabe-se que foi contratada uma empresa de consultoria para propor este novo modelo, que contempla alterações na estrutura organizacional, bem como realocações de competências. Medida interessante e louvável, mas é preciso ter cuidado, para não acabar planejando o que não se faz e fazendo o que não se planeja.

As instituições públicas são organismos complexos e seus problemas devem ser estruturados em uma metodologia científica de apoio à decisão. Interessante notar que neste contexto não existe a melhor solução, mas é preciso colocar a ciência em campo para buscar a melhor decisão. Conflitos de interesses, escassez de recursos, questões sociais, políticas, etc... são obstáculos que tornam esta tarefa de difícil resolução.  A melhor solução podemos encontrar no campo da decisão sob certeza, excluindo as nuanças inerentes às incertezas do âmbito decisório. Já a melhor decisão está assentada na elaboração de um processo coerente, lógico, individualizado e contextual.

Na metodologia de pesquisa, seja em qualquer área, a grande questão é a definição do problema/questão de pesquisa, e é em torno dele(a) e suas ramificações (objetivos) que todo o trabalho é estruturado. Na Administração Pública onde não há como separar os vieses, econômico, político e social, esta definição se torna ainda mais difícil, pois os problemas apresentam diversas faces, cada qual apresentado de uma forma específica por cada ator social envolvido. Por isso é de extrema importância efetuar este diagnóstico, considerando essas múltiplas verdades, para a correta compreensão e identificação do problema/questão. Bem, se a SEFAZ busca um novo modelo gerencial, presume-se ao menos que:

  1. o modelo existente não está atendendo determinados objetivos; ou
  2. há problemas identificados a serem resolvidos; ou
  3. há processos a serem eliminados ou aperfeiçoados ou concebidos; ou
  4. a instituição precise de uma análise geral do modelo que está posto em busca de novos conhecimentos ou resultados.

Presume-se também que o modelo existente não obteve uma avaliação satisfatória, e por fim, supõe-se que os atores envolvidos estão cientes deste processo de mudança. Diante do exposto surgem alguns questionamentos iniciais:

  1. O que norteou a contratação da consultoria externa?
  2. Houve uma avaliação do modelo que está em vigor, com base em critérios previamente estabelecidos?
  3. Os servidores da SEFAZ como um todo estão sabendo ou participando do processo?
  4. Qual é o objetivo buscado com este novo modelo proposto?
  5. Como serão avaliados os resultados do modelo proposto?

Eu como servidor de frente de batalha, não consigo responder a nenhum destes questionamentos, o que mostra que dois importantes aspectos em qualquer planejamento, a transparência e a integração não estão sendo atendidos. Para sabermos onde querermos ir é importante saber de onde viemos, para não sermos arrastados pelo ritmo dos acontecimentos. O Estado do Ceará mantém sua administração financeira e orçamentária em bons patamares, o que o torna referência em comparação com alguns entes da federação, isto não quer dizer, que não é preciso aperfeiçoar seu modelo, muito pelo contrário, sugere que estamos no caminho certo, e há sempre algo a fazer. Não é de bom tom pensar em mudança, sem que haja uma avaliação objetiva do que está posto. É como trocar as lentes dos óculos sem o exame prévio de um oftalmologista. É preciso conhecer os atores envolvidos, conhecer o cenário e buscar o comprometimento dos servidores nesta jornada.

Desta forma não estou dizendo que o modelo proposto é ruim, inclusive pode ser até excelente, mas da forma com está sendo concebido, também não posso dizer que é bom, e muito menos fazer qualquer juízo de valor. O mesmo raciocínio também se aplica ao modelo existente, que apresenta vantagens e desvantagens, mas que carece de ferramentas para sua correta avaliação. Numa breve pesquisa, desde 1971 (época de César Cals) já vivenciamos cerca de 17 arranjos organizacionais, e salvo melhor juízo, nenhum registro dos ganhos e perdas de cada modelo.

Outra questão não menos relevante dentro deste contexto é a mudança de um setor de extrema importância na auditoria fiscal, a Célula de Gestão Fiscal dos Setores Econômicos – CESEC. Propõe-se uma nova organização, trocando a especificidade da estrutura vigente por outra configuração mais genérica e abrangente, no entanto, os mesmos questionamentos levantados acima, permanecem sem as devidas respostas. E a ciência, como sempre, nos oferece sua história e seus ensinamentos.

Henry Ford vislumbrava um império totalmente autossuficiente. Na sua concepção, ele queria estar presente e controlar todas as etapas do processo industrial, desde o fornecimento de matérias-primas até a distribuição do produto acabado, ou seja, uma completa e complexa integração vertical. Porém, no decorrer do processo percebeu que empresas especializadas em determinadas tarefas, podiam fazer melhor e mais barato. Não fazia sentido continuar gastando tempo e dinheiro com atividades-meio em detrimento das atividades-fim. Era melhor, comprar ou contratar serviços ou produtos de empresas especializadas e focar nas atividades centrais da empresa.

Adam Smith, precursor da Escola Clássica da Administração, também propunha a divisão do trabalho em diversas tarefas menores, tanto quanto possíveis. E estas, distribuídas por outros tantos operários, de modo que cada um deles se tornasse um especialista na sua tarefa. Era melhor ter especialistas na execução de cada uma dessas tarefas, do que ter um só realizando todo o trabalho. Com a divisão desta forma aumentava-se, e muito, a produtividade. É bem verdade, que no início, estes princípios da divisão do trabalho foram concebidos para atividades industriais, porém posteriormente foram estendidos e adaptados às atividades administrativas e às empresas de serviços. No período da Revolução Industrial, a melhor prática estava ligada à especialização funcional, ou seja, quanto melhor o desempenho de uma função específica, melhor o resultado.

E a partir daí, diversos modelos foram surgindo, integrando os já existentes e levando em conta todos os demais aspectos que envolvem uma empresa e seus colaboradores: humano, econômico, financeiro, meio-ambiente, etc. Descobriu-se que não existe o the one best way. Há empresas que necessitam da especialização e outras não. O contexto que envolve as instituições é amplo e sujeito a constantes mudanças, e cada uma delas é merecedora de uma gestão específica e própria, seja ela pública ou privada. Não existe um modelo único de sucesso aplicável a todas as organizações. Realmente, a palavra especialização, por si só, já sugere a ideia de fazer algo melhor, diferente e específico. Mas até que ponto esta especialização é sustentável?

Um filme antigo de Charles Chaplin - Tempos Modernos faz uma sátira à divisão do trabalho, enfatizando tempos e métodos, para produção máxima e custo mínimo, e hoje, a impressão que temos é a volta deste modelo em todas as áreas do conhecimento. Temos especialistas em tudo, cada vez mais as atividades estão compartimentadas. Basta observar as especialidades médicas, os ramos do direito, os campos de atuação da engenharia, etc. Temos o especialista em coluna, em direito imobiliário, em esporte aquático, em terapia de casais, em injeção eletrônica, etc. Haja especialista!

Nesse caminho, desde 2007, a SEFAZ estruturou a auditoria fiscal em núcleos, denominados setores econômicos, que atendem as peculiaridades atinentes a cada setor específico: alimentos; couros, calçados e bebidas; automotivos; têxteis; farmacêuticos; e químicos. A legislação relativa ao ICMS é complexa e os regimes de substituição tributária, carga líquida, diferimento entre outros tornam ainda mais específico o gerenciamento do imposto, seja por parte do contribuinte, seja por parte dos agentes do Fisco. Uma gama de regimes específicos, para uma amplitude de atividades econômicas. A forma como a auditoria está hoje estabelecida propicia a especialização de seus agentes, e com isso presume-se ganho na atividade desempenhada, uma vez que a legislação pertinente ao segmento econômico torna-se mais consolidada e familiar, facilitando a execução do trabalho do auditor nas empresas. Este possível ganho, também é uma percepção, por tratar-se de algo até o momento não avaliado.

Porter[1] defendia o posicionamento estratégico da empresa como um dos pressupostos em busca da vantagem competitiva. Segundo o autor há três formas de estabelecer seu produto/serviço no mercado: diferenciação, liderança de custo e enfoque. Na diferenciação é preciso que a empresa busque no seu produto/serviço atributos que o tornem diferentes frente aos mesmos produtos no âmbito da concorrência. Na liderança de custo, o que vale é oferecer o mesmo produto a um preço atrativo. E por fim, o enfoque, tem como parâmetro um mercado-alvo, sem priorizar diferenciação ou custos, sendo reconhecido por algum aspecto em particular, por exemplo, um determinado grupo de compradores, um segmento da linha de produtos ou um mercado geográfico específico. O interessante, na visão deste autor, é que a falta de um posicionamento claro da empresa e a indefinição levam a empresa a uma situação de mediocridade estratégica e, possivelmente, a sua derrocada.

Na Administração Pública a busca da vantagem competitiva tem outros valores, mas a questão do posicionamento permanece, é preciso saber de onde vem e para onde vai, para não correr o risco de cair no paradigma do pato, que nada, anda e voa, mas tudo de forma precária. A SEFAZ vislumbra um novo modelo que contempla apenas três segmentos: indústria, atacado e varejo, mas a grande questão é: qual a base para esta mudança? Respostas como: “modelo utilizado por outros entes federados”; “modelo ultrapassado”; “a empresa de consultoria é a mesma utilizada em outros estados”; podem até ser justificativas, mas será que são válidas? Interessante registrar que a SEFAZ, a um tempo atrás, já dividiu sua fiscalização de estabelecimentos em dois segmentos: indústria e comércio, e os servidores mais antigos relembram como a época da “papeleta amarela”. Será uma volta ao passado? O passado é útil quando serve de experiência e base para a construção de futuro melhor.

Nos dias atuais há uma série de ferramentas que ajudam as empresas em todos os níveis a efetuar suas escolhas, mudar seu rumo, enfim, definir sua estratégia e como se posicionar frente aos seus múltiplos colaboradores. O processo decisório (olha ele de novo!)   compreende   a   aplicação   de diferentes modelos de tomada de decisão, cada um com sua particularidade, envolvendo múltiplas variáveis.  Vale ressaltar que a instituição que não compreende ou ignora determinadas variáveis envolvidas neste processo (econômicas, humanas, sociais, etc) pode cometer graves erros e, no caso da coisa pública, resultar em prejuízos ao erário e à sociedade. Uma decisão precisa assegurar coerência, eficácia, eficiência e efetividade antevendo possíveis cenários.

Um conceito interessante que pode ser muito bem aplicado na esfera pública é o de competência essencial. A ideia de competência essencial surgiu com C.K. Prahalad e Gary Hamel[2]. Para eles a competência essencial é

o aprendizado coletivo na organização, especialmente como coordenar as diversas habilidades de produção e integrar as múltiplas correntes de tecnologia. […] Diz respeito à harmonização de correntes de tecnologia, ela também está associada à organização do trabalho e à entrega de valor. [...] é comunicação, envolvimento e um profundo comprometimento em trabalhar através das fronteiras organizacionais. Envolve muitos níveis de pessoas e de todas as funções. [...] as habilidades que, juntas, constituem a competência essencial devem florescer em torno de indivíduos cujos esforços não sejam tão estreitamente focalizados para que eles consigam reconhecer as oportunidades de juntarem sua habilidade técnica com as de outros em novas e interessantes maneiras. (PRAHALAD; HAMEL, 1990, p. 81)

Talvez a melhor forma de perceber uma competência essencial, consiste em três análises: (1) há um conhecimento preexistente sobre algo (o que é e como funciona), (2) há habilidade para saber lidar e manusear com este conhecimento, e (3) por meio de ferramentas – a tecnologia – há a transformação de tudo isso numa perspectiva identificável e que agrega valor.

Sendo assim, o que quero mostrar com essa ideia é que se descobrirmos ou desenvolvermos ou aperfeiçoarmos nossa essência como instituição, podemos fazer diferente e melhor. Com já relatado anteriormente, integração e transparência são palavras fundamentais. O auditor fiscal, como peça chave no processo de fiscalização de empresas, precisa também participar deste processo de mudança. Precisa ser escutado. A instituição possui talentos profissionais em todas as áreas do conhecimento e é de fundamental importância juntar todas essas habilidades. Tomadas de decisão com base apenas em determinados setores ou pessoas, ou órgãos externos, pode apresentar consequências funestas. Este processo precisa ser transparente. O que está errado no modelo de hoje? O modelo proposto preenche estas lacunas? Ele é adequado (cumpre a tarefa), exequível (qualquer que seja seu custo, pode ser executado dentro das restrições impostas pelos limites financeiros e de recursos humanos e materiais) e aceitável (atende os critérios adotados)?

Para finalizar, gostaria de esclarecer, que os autores citados no texto, são estudiosos na área de Administração e como eles, existem outros mais, cada um contribuindo com seu conhecimento em busca de uma gestão de excelência. Há uma série de ferramentas e conceitos validados na área acadêmica que subsidiam uma tomada de decisão. Relevá-las a segundo plano é um erro lastimável. Ignorar uma variável importantíssima neste processo – o auditor, não é um bom rumo. É verdade que precisamos sair da estagnação, da mesmice, buscar novas ideias para oferecer um serviço de excelência à sociedade, por outro lado, ao buscar novos caminhos, sem um bom alicerce, a instituição corre o risco de se dispersar.

 

[1] PORTER, Michael E. Vantagem Competitiva: criando e sustentando um desempenho superior. Rio de Janeiro: Campus, 1989.

[2] PRAHALAD, C. K.; HAMEL, G. The core competence of the corporation. Harvard Business Review, v. 68, n. 3, p. 79-91, 1990.

 

*Flávio Julião é Auditor-Fiscal da Receita Estadual do Ceará, mestre em Administração pela Universidade Potiguar e graduado em Ciências do Mar - habilitação em Administração pela Escola Naval, a mais antiga instituição de ensino de nível superior do Brasil.