Alterações nas hipóteses de presunção de Omissão de Receita
O conjunto das presunções de omissão de receitas sofreu importantes alterações na nova Lei do ICMS: algumas das hipóteses pré-existentes tiveram seu alcance alargado ou melhor explicitado, mas também foram criados novos dispositivos que incrementaram as possibilidades de detecção desse tipo de ilícito.
Neste texto, serão abordadas apenas as alterações na redação das hipóteses de presunções de omissão de receita anteriormente previstas na Lei 12.670.
Vamos às mudanças.
Parte 1 - A nova redação das hipóteses de omissão de receitas já existentes
De partida, identificam-se modificações nos incisos I, II e III do antigo § 8º do Art. 92 da Lei 12.670/97, que tratavam de tipificações vinculadas a uma só causa: escassez de saldos contábeis nas contas do Ativo Disponível para lastrear o registro dos pagamentos efetuados em determinada data ou período, mais conhecida como insuficiência de caixa.
Tais dispositivos se referiam respectivamente ao suprimento indevido de caixa, ao saldo credor de caixa e ao passivo fictício.
1. O antigo “suprimento indevido de caixa” (inciso I)
O inciso I do revogado § 8º do Art. 92 previa como hipótese de omissão de receita o suprimento de caixa não justificado da conta “caixa”,
Perceba-se que o termo “numerário” no corpo do dispositivo induzia a essa interpretação:
§ 8º Caracteriza-se omissão de receita a ocorrência dos seguintes fatos:
I - suprimento de caixa sem comprovação da origem do numerário;
Embora o termo “numerário” induza a uma interpretação literal de que o suprimento se refere a fornecimento do recurso em espécie, a jurisprudência administrativa e judicial é pacífica no sentido de tomar o termo “caixa” na sua acepção mais ampla de disponibilidades (caixa e equivalentes de caixa).
A anacrônica redação do inciso em comento foi, então, substituída pela do inciso I do §7º do Art. 146 da Lei 18.665/2023:
Ar.t 146
§7º Caracteriza-se omissão de receita a ocorrência dos seguintes fatos:
I-suprimento de quaisquer contas representativas do ativo sem que se comprove, cumulativamente, a origem e a entrega do recurso, bem como a capacidade financeira do provedor; (grifo nosso)
O novo texto é uma adaptação cearense de presunção similar contemplada na legislação do Distrito Federal (Lei 1.254/97, Art. Art. 5º-A, III) e de Alagoas (Lei 5.900/96, Art. 9º, III).
Os trechos destacados chamam a atenção para dois aspectos na redação do dispositivo substituto.
1.1. Extensão do conceito de “suprimento indevido” para todo o Ativo
Na nova redação, optou-se por uma redação mais abrangente, considerando, como suprimento indevido, todo tipo de inserção de bens ou direitos no patrimônio e não somente na conta “Caixa” ou outras do subgrupo “Ativo Disponível”.
Esta parte da mudança não se justifica somente em razão da virtualização dos meios de pagamento decorrentes dos avanços tecnológicos, que tornaram rarefeitas as movimentações de dinheiro em espécie e de outros valores em papel para quitação das transações.
Ela se explica, também, por ser muito comum o acréscimo no saldo de contas de Ativo, fora do Disponível, cuja contrapartida: a) não é comprovada; b) não tem correspondência com a natureza do fato.
No primeiro caso, poderíamos ter, por exemplo, um incremento no valor do imobilizado decorrente de um aumento fictício de capital social, disfarçando uma real aquisição à vista, ou ocultando o respectivo passivo (que resultaria em pagamentos futuros), em face de insuficiência de saldos de disponibilidades para contabilizar a operação.
O segundo caso pode ser ilustrado por um lançamento a débito de valores a receber de Clientes (débito) tendo como contrapartida (crédito) uma rubrica de depreciação acumulada do imobilizado (conta retificadora do Ativo).
Cuida-se, aqui, do chamado “lançamento suspeito”, pois, do ponto de vista da correta técnica de escrituração, este conjunto de partidas não faz o menor sentido.
O ardil consistiria em, de forma indireta, suprir indevidamente a conta Clientes e em momento posterior, as contas de disponibilidades, por meio de recebimentos inexistentes provenientes do aumento artificial de direitos a receber.
Ressalte-se que nem todo acréscimo no Ativo decorre de um suprimento, pois a existência deste pressupõe necessariamente a entrada de um recurso em conta dessa natureza, o que não acontece, por exemplo, com o aumento de investimentos permanentes causado por ajuste de valor decorrente dos métodos de avaliação patrimonial.
1.2 Comprovação da movimentação financeira e da capacidade do supridor
Pela exegese do novo texto, a obrigatoriedade da comprovação do suprimento compreende, além da origem do valor suprido, que já era obrigatória, a demonstração do destino do recurso e a capacidade financeira do supridor.
Não somente os aportes de disponibilidades, mas todos os ingressos de recursos em contas de Ativo, ficaram submetidos aos mesmos requisitos para gozar de validade perante o fisco.
Se a origem se refere à fonte interna ou externa de onde proveio o recurso, o destino diz respeito à sua entrega efetiva por sócios ou terceiros, vale dizer, à demonstração de que o valor suprido ingressou no patrimônio da empresa ou de que causou, de fato, o decréscimo no valor de outro bem ou direito, caso seja oriundo de movimentação de recursos dentro do próprio Ativo da entidade.
Em se tratando do aporte de disponibilidades, é necessário demonstrar a movimentação financeira do recurso até chegar ao patrimônio da empresa. Logo, a documentação hábil e idônea para comprovar a origem e o destino são os extratos bancários, onde se possa identificar a saída do recurso da conta do provedor e a entrada na conta da empresa, coincidente em datas e valores com o valor do suprimento. Um mero contrato de mútuo, por exemplo, ainda que firmado anteriormente à data do aporte, não é suficiente.
É fundamental, ainda, quando for o caso, a comprovação da capacidade financeira do supridor, para evitar que o aporte seja feito com recursos que estavam elididos do conhecimento do fisco, à margem de declarações anuais de impostos, escritas fiscal e contábil e outros documentos e registros comprobatórios de patrimônio e rendimentos.
Aliás, essas exigências relativas à comprovação, já estão disciplinadas, no que diz respeito às empresas optantes do Simples Nacional, pela Instrução Normativa Sefaz nº 24/2023
2. Separação das presunções relativas a saldo credor de caixa e passivo fictício (antigo inciso II)
Estas duas hipóteses de presunção constavam do mesmo dispositivo (inciso II do antigo § 8º), permitindo a dubiedade de interpretações:
II - saldo credor de caixa, apresentado na escrituração ou apurado na ação fiscal após inclusão de operações não declaradas, assim como a manutenção no passivo de obrigações já pagas ou inexistentes;
Da forma como estava redigido, o dispositivo poderia levar entender que a presunção de omissão de receitas, no caso de passivo fictício, somente se concretizaria se resultasse saldo credor, quando da inclusão da obrigação “já paga ou inexistente” na reconstituição do caixa.
A leitura poderia ser: saldo credor de caixa apresentado na escrituração ou apurado na ação fiscal após inclusão de operações não declaradas, assim como (saldo credor após) a manutenção no passivo de obrigações já pagas ou inexistentes.
Era necessário, portanto, o desmembramento da segunda parte do antigo inciso II, ficando o saldo credor de caixa e o passivo fictício, contemplados nos novos incisos II e III, respectivamente, posto serem tratados como hipóteses autonômas de omissão de receitas na legislação tributária nacional. A redação trazida pelo Art. 146, § 7º, da nova lei corrigiu essa imprecisão:
II - saldo credor de caixa, apresentado na escrituração ou apurado na ação fiscal;
III. manutenção no passivo de obrigações já pagas, inexistentes ou cuja exigibilidade não seja comprovada;
3. Inversão do ônus da prova nos casos de passivo fictício (Art. 146, § 7º)
Na redação anterior a da Lei 12.670 (vide acima), distinguem-se dois tipos de passivo fictícios as exigibilidades efetivamente constituídas a partir de operações com cláusula de pagamento a prazo, constantes do Balanço Patrimonial, mas já quitadas à época da elaboração deste (“obrigações já pagas”); e os valores contabilizados como dívida sem nunca o terem sido, como seria o caso de uma compra a vista (obrigações “inexistentes”).
O novo texto da lei acrescentou ao dispositivo as obrigações “cuja exigibilidade não seja comprovada”.
Não se trata, na verdade, de uma nova categoria de passivo fictício ou de extensão do seu conceito, mas de uma importante implicação relacionada aos procedimentos de fiscalização.
O que isso quer dizer?
Significa que o legislador passou a considerar como concretizada a hipótese de passivos fictício, nos casos em que o contribuinte, após intimado a prestar informações, não se manifestar acerca dos saldos de exigibilidades que compõem o Balanço Patrimonial.
Trata-se de mudança substancial no que tange ao ônus da prova indireta da ocorrência de omissão de receita.
Antes, o silêncio do contribuinte forçava o agente do fisco a demonstrar a quitação da dívida ou a sua inexistência. Agora, essa omissão por parte do contribuinte pressupõe legalmente a concretização da hipótese.
Lavrado o auto de infração, o contribuinte se incumbirá de desconstituir o crédito tributário em processo administrativo tributário com as garantias que a lei prevê.
Mas atenção, o novo texto não obriga o contribuinte a fazer prova negativa em relação às obrigações ainda não pagas. A concretização da hipótese só se dá caso ele se recuse ou se omita de discriminar as operações e respectivos credores, datas e valores relacionados aos saldos não pagos, estampados no livro Razão.
Uma vez prestadas as informações solicitadas acerca da composição do saldo, caberá ao fisco provar que as obrigações não existem.
3. Substituição da expressão “preço médio ponderado por “custo médio ponderado”, no antigo inciso V
Neste caso, apenas corrigiu-se uma atecnia, pois o padrão de comparação das mercadorias adquiridas deveria mencionar o “custo médio” – em vez “preço médio” – confrontado com o valor unitário da mercadoria lançado no inventário, que também é avaliado em termos de custo de aquisição. Veja a redação corrigida:
VI - diferença a maior entre o preço custo médio ponderado das mercadorias adquiridas ou produzidas e os seus respectivos valores unitários informados no Inventário de Mercadorias escriturado;
4. O Resultado Bruto com Mercadorias calculado pelo valor das saídas
O inciso IV do § 8.º da Lei 12.670, que tratava como presunção de omissão de receita o Resultado Bruto Operacional que evidenciasse prejuízo, foi mantido inalterado pelo inciso V do § 7.º do Art. 146 da nova lei.
§7º Caracteriza-se omissão de receita a ocorrência dos seguintes fatos:
V - montante da receita líquida inferior ao custo dos produtos vendidos, ao custo das mercadorias vendidas e ao custo dos serviços prestados noperíodo analisado;
Todavia, o paragrafo § 10, inciso II do mesmo artigo, assim dispôs:
§ 10. Salvo disposição em contrário da legislação, relativamente ao que preveem os §§ 7.º e 9.º, observar-se-á o seguinte, conforme o caso:
II - no que se refere ao disposto no inciso V do § 7.º, caso o contribuinte não realize operações de venda de mercadorias ou prestações de serviços, a diferença será calculada pelo valor das operações de saída líquidas constantes dos documentos fiscais deduzidos do seu respectivo custo;
Considerando o princípio da autonomia dos estabelecimentos, o novo dispositivo buscou preencher lacuna da lei anterior, estabelecendo critério de cálculo para aplicação do disposto no inciso V do §7º aos estabelecimentos que não efetuarem vendas no período, como é o caso de depósitos fechados e de algumas indústrias e atacadistas que só realizam operações de transferência.
Ocorre, como é notório, que o Supremo Tribunal Federal decidiu, por ocasião do julgamento da ADC – RN (DJe de 15/08/2023) que o ICMS não incide sobre as operações de transferências de mercadorias para estabelecimentos do mesmo titular.
Ademais, o Art. 1º da Lei Complementar nº 204/2023 positivou o entendimento da Corte Maior, acrescendo o parágrafo 4o. ao artigo 12 da LC 86/96.
Esta nova configuração legal e jurisprudencial pode levar a uma aparente antinomia com o disposto no supracitado inciso II do § 10. Mas é uma antinomia apenas aparente. Explica-se.
A determinação do inciso em comento se pauta em duas premissas:
1. um valor total de saídas de mercadorias inferior ao seu respectivo custo de aquisição ou produção caracteriza omissão de receita, independentemente de o estabelecimento ter realizado operações de venda;
2. a presunção legal é de que essa omissão deriva de venda dos estoques sem emissão de nota fiscal, e não de saída por valor inferior custo. É que, no caso de estabelecimentos que realizassem, por exemplo, transferências de mercadorias em operações subavaliadas, tais diferenças não poderiam configurar omissão de receita, já que não se trata de operações venda.
Perceba-se que a intenção subjacente do legislador não foi a de burlar a decisão do STF, nem tampouco criar antinomia com o disposto na Lei 204/2023.
Isto porque, a teleologia por trás da inserção desse dispositivo não é considerar a parcela do custo total que excede ao valor das saídas como sendo decorrente da remessa de várias unidades de mercadoria por valor abaixo do respectivo custo unitário.
A presunção, na verdade, é a de que a empresa vendeu mercadorias sem emitir nota fiscal, mas “deu baixa” nos respectivos valores de custo em sua conta contábil de estoques ou no inventário.
Essa combinação de procedimentos provoca um reconhecimento do custo real dessa Mercadoria Vendida sem que haja o registro fiscal ou contábil da receita correspondente. E isto se deu em tantos casos que o valor de custo total superou o valor das saídas totais acobertadas por documentos fiscais! (O que é muito comum, principalmente no caso de empresas que não mantém escrita contábil).
No próximo artigo, o assunto é a criação de novas hipóteses de omissão de receita.
Até lá!