O Desafio da Unidade: Reflexões sobre o Momento Atual da Auditece
Por Juracy Soares*
Por que chegamos a esse estágio de embate entre associados?
Quais os motivos que nos unem? E o que nos leva, neste momento, a um clima de acirramento de ânimos? Será que ainda temos razões para permanecermos – todos – sob a mesma entidade?
Essas perguntas me acompanharam ao longo desse fim de semana e me levaram a escrever estas linhas. Há poucos meses, se alguém me dissesse que viveríamos uma situação como a atual, eu certamente não acreditaria. Hoje, no entanto, vemos um grupo de associados se desfiliar para criar um canal paralelo de comunicação e até acenar para a formação de uma nova associação. Vemos também outro grupo a exigir da entidade uma solicitação de ADI contra outro grupo. E surge a pergunta: com qual objetivo?
Um olhar para a nossa história
Quando foi criada, em 2000, a Auditece reuniu como associados todos os servidores da SEFAZ-CE detentores do cargo de Auditor Fiscal da Receita Estadual (AFRE), incluindo aqueles que haviam alcançado o cargo por redenominação ou transformação.
Posteriormente, e mais notadamente a partir de 2001, passaram a ingressar também, como associados legítimos, servidores que originalmente não haviam prestado concurso para o cargo de AFRE. Entre eles estavam:
- Técnicos de Finanças (nível superior), concursados da década de 1980 para a área meio, que tiveram seus cargos transformados em Auditor Fiscal do Tesouro e, por consequência, ampliadas as suas competências;
- Agentes Arrecadadores (nível médio), parte dos quais foi aprovada em uma seleção interna promovida pela SEFAZ-CE em 1992, que resultou na transformação de pouco mais de 20 servidores em cargos de nível superior, com a denominação de AFRE;
- Fiscais de Tributos (nível médio), que desde a década de 1960 já exerciam atividades de fiscalização plena junto a empresas e trânsito, além de atividades na área meio e funções de suporte administrativo.
A maioria desses colegas permanece, ainda hoje, associada à Auditece — ativos ou aposentados — compondo a base histórica e institucional da entidade.
O concurso de 2007 e as mudanças posteriores
Em 2006 foi idealizado um novo concurso público, realizado em 2007, que criou cargos para suprir tanto a área fim quanto a área meio da SEFAZ-CE. Os cargos ofertados foram:
- Auditor-Fiscal da Receita Estadual
- Analista Contábil-Financeiro
- Analista Jurídico
- Analista de Tecnologia da Informação
A Lei nº 14.350/2009 posteriormente ampliou as competências desses cargos, assegurando, em caráter excepcional, a todos os servidores do grupo TAF a competência para o lançamento do crédito tributário (Art. 10).
Mais tarde, a Emenda Constitucional nº 81/2014 inseriu o Art. 153-A na Constituição Estadual, conferindo exclusividade aos integrantes da Administração Fazendária para o lançamento do crédito tributário — prerrogativa reforçada na legislação subsequente e que embasou os concursos seguintes.
Em 2021, sob a vigência desses dispositivos supramencionados, realizou-se novo concurso, já com os cargos redenominados como:
- Auditor Fiscal da Receita Estadual
- Auditor Fiscal Contábil-Financeiro
- Auditor Fiscal Jurídico
- Auditor Fiscal de Tecnologia da Informação
Em fevereiro de 2023, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 5299, declarou inconstitucional o Art. 10 da Lei 14.350/2009, gerando repercussões significativas na estrutura de carreiras da SEFAZ-CE. É importante frisar que nesse julgamento o STF ignorou o Art. 153-A e mais especificamente, o seu parágrafo 5º., que confere exclusividade a todos os integrantes da Administração Fazendária para o lançamento do crédito tributário. Esse referido artigo e parágrafo permanecem em vigor em nosso ordenamento jurídico.
A mudança estatutária
Em setembro de 2023, a Auditece registrou em cartório uma alteração estatutária que formalizou o ingresso, como associados, dos ocupantes dos cargos criados em 2007 e 2021 — reconhecendo-os como integrantes da mesma carreira fazendária de nível superior.
Até então, tudo transcorria com harmonia.
Mas em 2025, com a tramitação do PLP 108/2024 e a discussão nacional sobre quem deveria ser considerado “autoridade fiscal” apta a integrar o Comitê Gestor do IBS, as divergências se intensificaram.
A SEFAZ apresentou proposta de lei estadual para reestruturar cargos e competências, e a Auditece realizou uma série de Assembleias Gerais Extraordinárias em 2025 para deliberar sobre o tema. A AGE de 5 de setembro manifestou apoio à proposta por maioria simples.
Posteriormente, verificou-se que, por tratar de deliberação sobre “nomenclatura, competências, atribuições e prerrogativas dos cargos”, tais assembleias exigem quórum qualificado, conforme o Estatuto (Art. 18, §12). Diante da inobservância desse requisito, a Diretoria — amparada em parecer jurídico — reconheceu a nulidade de todas essas deliberações que se deram no âmbito dessas AGEs de julho, setembro e outubro, realizadas simultaneamente com o SINTAF.
O momento atual e os desafios à unidade
A decisão de reconhecer a nulidade gerou debate entre os associados.
Em meio às discussões, surgiram declarações sobre a possibilidade de a entidade propor uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra a nova Lei nº 19.453/2025, que reestruturou as carreiras da Administração Fazendária.
Outros chegaram a defender o afastamento da Diretoria Colegiada e/ou a criação de uma nova entidade.
Essas manifestações, compreensíveis em momentos de tensão, não podem, contudo, nos afastar do princípio fundamental que rege a Auditece: a defesa de todos os seus associados.
A entidade não pode e não deve agir contra qualquer grupo de seus membros, sob pena de negar sua própria razão de existir.
É igualmente necessário reconhecer a incoerência de quem prega a “purificação” da entidade apenas com base nos concursados de 2007 e 2021, sem considerar as transformações anteriores que também alteraram a natureza dos cargos de diversos associados desde os anos 1960.
A seletividade fragiliza o argumento e ignora a complexa história da própria SEFAZ-CE.
Um alerta necessário
É importante lembrar, especialmente aos colegas que tiveram seus cargos transformados de nível médio para superior por seleções internas ou que ingressaram como Técnicos de Finanças (nível superior) e posteriormente tiveram seus cargos redenominados, que não há base jurídica para afirmar que tais situações estão “prescritas”.
No Direito Constitucional, a inconstitucionalidade não prescreve, pois se trata de nulidade absoluta, como já consolidado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
O STF tem decidido reiteradamente que atos inconstitucionais são insanáveis e não se convalidam pelo decurso do tempo.
Ou seja, se o argumento for o de apontar uma inconstitucionalidade, ele pode vir a alcançar a todos os que ingressaram de forma irregular, independentemente da data, já que a violação à Constituição não se apaga pelo tempo.
No mínimo, e havendo provocação, o MPF, por meio da PGR pode desenvolver uma denúncia dirigida ao STF e essas situações estariam então sob o escrutínio do que é ou não válido pela Constituição Federal.
Outros podem até argumentar hoje: “mas essas situações já sobreviveram a duas ADIs e nunca foram questionadas”. A esses colegas eu advertiria com uma simples constatação, que é a de que nunca essas situações foram objeto de uma provocação direta junto à PGR, o que, em caso de embate interno, não há garantias de que não será. Essa é uma advertência a qual me sinto na obrigação de fazer.
Por isso, antes de se buscar “corrigir” a história recente, é preciso compreender as implicações de revisitar juridicamente o passado.
O papel da Assembleia e o caminho institucional
A solução para nossas divergências não virá de grupos de mensagens, nem de rupturas. Virá do debate institucional e democrático, conduzido na Assembleia Geral — órgão máximo e soberano de deliberação da Auditece, conforme o Art. 17 do nosso Estatuto.
É na Assembleia que devemos buscar consenso, exercendo a pluralidade de ideias com respeito, serenidade e espírito público. A divergência é saudável; a divisão, não.
Por tal motivo, na próxima Assembleia deveremos nos debruçar sobre essas questões e até em função das afirmações e demandas de associados, teremos que pautar se a entidade realmente deseja – manifestando sua posição pela AGE - essa eventual solicitação de ADI à Associação Nacional. Temos que nos certificar se esse é mesmo um desejo da maioria, como defendem alguns. E, se for, terá que ser legitimado e reconhecido por meio da correspondente validação por meio do voto conforme o quórum específico previsto em nosso Estatuto.
O futuro que depende de nós
Como carreira típica de Estado, o que mais nos enfraquece é a ausência de uma Lei Orgânica Nacional capaz de uniformizar a nomenclatura e as atribuições das Administrações Fazendárias em todo o país.
Enquanto a Magistratura, o Ministério Público e a Defensoria consolidaram modelos unificados, nós ainda convivemos com uma multiplicidade de denominações e estruturas que dificultam a consolidação da carreira fazendária como instituição de Estado.
Um apelo à serenidade e à união
Espero sinceramente que, nas próximas semanas, os ânimos se acalmem e que possamos reencontrar o caminho do diálogo e da conciliação.
O futuro da Entidade — e de cada um de nós — só será sereno se formos capazes de relevar o passado e projetar um futuro comum, construído com base na confiança, na empatia e no compromisso com a nossa missão institucional.
Seguiremos fortes se permanecermos juntos.
*Juracy Soares é diretor executivo da Auditece